30 maio 2010

Little boxes

A minha vida uma vez mais arrumada em caixas.

27 maio 2010

Antes, não tinha medo de andar de avião, porque o mundo era mágico e as nuvens feitas de algodão. Quando morria ia para o céu ou nem chegava a morrer, porque a realidade, tal como a conhecia, o seu pequeno corpo e a sua grande alma eram indossolúveis. Reparava nas pequenas coisas, as coisas que eram do seu tamanho, e o mundo era grande. Numa estrada cheia de carros, teimava em salvar a maria-café, ela a enrolar-se na sua mão agradecida, e lá em cima os gritos da mãe. Noutros dias, a mãe dizia-lhe: Hoje estás tão linda. És a minha princesa. E ela olhava para o vestido herdado da prima mais velha, dava uma volta sobre si mesma e acreditava... que era linda e que era uma princesa.

Retratos

A tinta das nossas recordações está a começar a desvanecer-se. Faço um esforço, semi-cerro os olhos, mas já não lhes consigo distinguir os contornos. Estou nos teus pés, a dançar ao som de Beirut, mas, devagarinho, a música vai soando mais distante. Nado na Lagoa do Fogo, tu à minha frente nas rochas a olhares para mim e a sorrir, Nem morto me apanham aí dentro, e as colinas começam a confundir-se com o céu. Em Praga fizemos amor, fizemos amor várias vezes, clubes de jazz, a noite e a ponte a inspirar-nos, mas refiro-me especificamente àquela vez... depois de uma discussão. Subimos as escadas já reconciliados, eu a brincar com o teu rabo, tu a fugires. Tínhamos prometido não fazer amor naquela noite. Essa tinha sido a resolução da nossa discussão, mas mal nos vimos naquele quarto lindo, grande, a ponte do outro lado da janela, as roupas desapareceram e vimo-nos nus um diante do outro, despidos de preconceitos, de angústias, de medos. Foi maravilhoso, e, no entanto, agora que recordo esse momento, já não consigo distinguir bem as formas do teu corpo, a maneira como se encaixava tão bem no meu, os teus olhos em mim, a fazerem-me vir só pela intensidade com que me olhavam. Estás, devagarinho, a sair de dentro de mim. Quero guardar os teus retratos para sempre, mas cada dia te tornas menos real, e os retratos voam contigo para aquela outra realidade paralela. Aquela onde vamos ao cinema à sexta-feira à noite e tudo corre bem. Eu vôo também com os retratos, mas acordo alagada em suor, de volta para esta realidade, onde alguém se esqueceu de te dar um papel. Hoje entrei dentro de um coração em ponto gigante, as várias estruturas e o coração que batia de forma regular. Quis-te lá dentro comigo, mas tudo o que eu tinha teu era um retrato desbotado.

21 maio 2010

Tenho estado a ouvir a Antena 2 no carro. Abro as janelas e é ver sonatas de piano, jazz, trechos de ópera e concertos a voar pelo carro fora. Muito cinematográfico. De fora, devo parecer aqueles bimbos que ouvem música de gosto duvidoso mais alto do que devia ser permitido, com o carro a abanar das batidas que ressoam a vários kilómetros de distância. Mas eu não me importo. Gosto daquilo. Condiz com a minha alma trágica. O Rufus, a Ana dos cabelos ruivos e eu. Os três pertencentes ao mesmo clube. O clube dos melodramáticos, que retiram sempre algo de bonito e gozável do sofrimento virtual. Em pequena, sim, porque hoje sou crescida e sábia, tinha por hábito passar tardes inteiras a desmaiar e a morrer de formas românticas. Não sei bem qual era a génese do gozo que eu tirava dessas encenações, mas sei que não condizia em nada com os desmaios verdadeiros que tinha (sempre fui muito vaso-vagal), nem das mortes das quais ia tomando conhecimento. Eram dois mundos distintos. O meu mundo fantasioso, trágico, romântico, lindo de morrer e o mundo real onde desmaios e mortes não tinham piada absolutamente nenhuma. Hoje já não enceno mortes, nem desmaios, mas mantenho o meu mundo fantasioso e trágico e volta e meia refugio-me nele. Estão milhares de crianças a morrer em África, milhares de pessoas a passar fome e frio, as atrocidades da guerra a afectarem outros milhares. E eu aqui, a embalar-me na tragédia alheia e inexistente e a sorrir, enquanto o carro percorre as curvas de Monsanto.

18 maio 2010

Às vezes ainda sonho com a casa velha. Acordo suada, assustada com um pesadelo qualquer mas, quando o faço, não estou na minha casa de agora, estou na casa velha, no quarto azul, deitada na cama onde os meus bisavós dormiam lado a lado, a cama de corpo e meio, que antes os casais dormiam mais juntos. A minha avó nunca dormiu aqui, excepto para ter o meu tio e, 5 anos depois, a minha mãe. Depois dos meus bisavós falecerem, a cama foi abandonada e, só muito mais tarde, a minha mãe viria a recuperá-la, por amor aos seus avós e ao seu primeiro berço, e a colocaria no meu quarto. Nunca tive dificuldade em herdar os amores da minha mãe, por isso foi-me fácil gostar da cama, apesar do ranger da madeira e do ar desactualizado, pouco típico de uma adolescente e em total dissintonia com os posters das revistas espalhados pelas paredes. A madeira da cama era escura, a cabeceira alta e aos pés, uma cabeceira semelhante, de forma que a cama parecia um barco. Eu adorava o meu barco e, todas as noites, viajava até adormecer.
No outro dia, fui pôr a minha sobrinha a fazer a sesta. Ela adora fazer a sesta e a sensação que eu tive, ao passar por todo aquele ritual próprio do deitar de uma criança, só se compara à sensação de conforto e segurança que sinto quando penso na casa velha e na cama dos meus bisavós. Quero dar à minha sobrinha todo carinho do mundo, fazê-la acreditar em todas as ilusões e sonhos mágicos. Para que, quando for mais velha, tenha sempre um lugar para onde ir, quando a meio da noite acordar assustada. Quando um dia não souber quem é.

12 maio 2010

Carta

Roma, Setembro de 2009
Fizeste-me agora lembrar o High Fidelity do Nick Hornby, que acabo de ler, e a descrição das suas primeiras experiências sexuais. Eu descobri o sexo acidentalmente e sozinha uns anos antes de ti, porque sou rapariga e, para o bem ou para o mal, nasci logo com o equipamento pronto a usar. Mas não era uma coisa que associasse aos rapazes, até muitos anos mais tarde. Já muito mudou desde essa altura, apesar de no fundo, como se calhar toda a gente, que de resto também não sou assim tão original, me sentir ainda essa rapariguinha de vestido branco, cujas cuecas de renda branca tu acidentalmente viste há já tantos anos atrás. Este verão comprei um vestido branco, mas não foi a mesma coisa. As minhas pernas cresceram e encheram-se de celulite. Os pêlos cresceram também noutras partes e eu teimo em tirá-los e eles teimam em crescer outra vez e eu lá vou tirá-los. O sexo também já não é aquele prazer acidental e solitário. Não me casei, nem tive filhos, como achei que ia garantidamente acontecer até aos 24, esquece lá isso. O máximo que fiz foi viver 2 anos com alguém e ter um cão que foi recambiado para casa da minha tia assim que o namoro acabou. Tirei enfermagem e eu, que tinha pavor a agulhas, de repente, já nada me faz desmaiar, mas continuo a chorar com a dor dos doentes. De resto, nem acredito que aqui vim parar. Passo a vida a pensar em cinema e a ler romances. No outro dia, embebida de espírito cinematográfico, comprei um chapéu de coco, por causa de um namorado e de uma fantasia. O namoro acabou e a fantasia foi com ele, mas fiquei com o meu chapéu de coco pendurado no espelho do quarto. O namorado agora é outro (já aprendia a ficar sozinha, mas o máximo que consigo é 4 meses de cada vez e às vezes nem isso, o que faz com que nos primeiros meses com um, esteja ainda a resolver na minha cabeça a situação do anterior, é uma seca, uma estupidez, mas tipicamente meu) e pela primeira vez em anos sinto-me bem, mas a minha fé em relação a relações tem sido muito abalada ao longo dos anos, quem me dera que por culpa dos outros, mas infelizmente mais por culpa minha mesmo, que de anjo tenho pouco, só boas intenções e às vezes nem isso, é pena. Apesar disso, mantenho sempre um entusiasmo estúpido por tudo e por nada, como se fosse miúda e estivesse a descobrir tudo pela primeira vez. Como o anjo das Asas do Desejo, como as crianças, como o meu ex-cão.
E, pronto, acho que consegui fazer um bom apanhado dos meus últimos anos. É a segunda vez que escrevo isto, estou para morrer. Se agora o facebook deixar de funcionar, acho que desisto e toda esta preciosa informação vai para o lixo cibernáutico que eu não sei onde é, mas tu deves saber, alguém deve saber de certeza.
Numa escala de felicidade. De 0 a 10? 8. Beijinhos.
As vezes que já não entrei, à semelhança do Greenberg, naquele carro a caminho da Austrália. As vezes que já não saltei, como ele, do carro, antes ainda de chegar ao aeroporto. E de todas as vezes, tão feliz que fiquei por chegar a casa e pendurar o quadro na parede. A vida decide-se em segundos como estes. O segundo em que se entra no carro, o segundo em que se sai do carro. A vida desfaz-se também assim, no decorrer de um segundo.
A próxima vez que pensar em ti, vou pôr o rádio mais alto. Daqui a um, dois, três anos, o tempo que for necessário, saberei pensar em ti, recordar-te, ver-te, falar-te, sem ter automaticamente vontade de saltar para dentro do carro. Podes confiar em mim neste assunto. Eu sei. Eu tenho o guião.

08 maio 2010

Doloroso. Nunca possuirmos ninguém por inteiro. Nunca nos darmos completamente. Termos um bocadinho de tanta gente dentro de nós. Pertencermos a tanta gente simultaneamente.

05 maio 2010

Inscrevi-me na ginástica. As aulas são em grupo. Estava rodeada de pessoas mais velhas e não acertava um único passo. Senti-me tal e qual a Baby no Dirty Dancing quando ela vai àquela primeira aula de dança dos velhotes, logo no início do filme. Éramos todas mulheres, todas com o seu pneu ou a sua celulite, todas mais ou menos descoordenadas, fatos de treinos e calções fora de moda. Tive vontade de sair dali e ir para o sítio onde as pessoas cool fazem ginástica, mas depois pensei no ginásio que frequentei há uns anos e lembrei-me que ali também não havia gente cool. Um bocadinho mais bem parecidos, talvez, mas tão normais como eu. No final da aula, reunimo-nos na casa-de-banho e o tema dominante da conversa foram os cremes anti-estria. Nunca me senti à vontade a andar por entre corpos nus femininos, de toalha na cabeça, por isso tentei despachar-me com rapidez e não participei na conversa. Mas comoveu-me aquilo. Comoveram-me aqueles conselhos de veracidade duvidosa, aqueles corpos tristes, cheios de dicas para dar e receber. Não fazem séries sobre nós. Alguém devia fazer uma série sobre nós e tornar-nos as heroínas, assim mesmo, em fatos de treino e calções fora de moda. Ocasionalmente mais bonitas, de vestido. Com namorados também com o seu pneu, a sua careca, eventualmente com uma roupa e um sentido de humor sexys. O genérico da série começaria com um poema da minha infância de Ribeiro Couto. O poema, quando eu o conheci, estava escondido num LP velhinho dos meus pais, e de lá saía a voz do Villaret que, de uma forma deliciosa, dizia: Esta menina gorda, gorda, gorda, tem um pequenino coração sentimental. Seu rosto é redondo, redondo, redondo, toda ela é redonda, redonda, redonda, e uns olhinhos estão lá no fundo a brilhar. É menina e moça. Terá quinze anos? Umas velhas amigas de sua mamãe dizem sempre que a encontram, num êxtase longo: -Como esta menina está gorda, bonita! E ela ri de prazer. Seu rosto redondo esconde os olhinhos, no fundo a brilhar. Às vezes, no quarto, diante do espelho, ao ver-se assim tão gorda, tão gorda, tão gorda, ela pensa nas velhas amigas de sua mamãe e também num rapaz que a olha sorrindo, quando toda a manhã ela vai para a escola: - Ele gosta de mim... ele gosta de mim!... Eu sou gorda, bonita!... E os dedos gordinhos pegando nas tranças, têm carícias ingénuas diante do espelho.
Não era genial?

02 maio 2010

Domingo

Hoje vou faltar ao ténis. Vou dormir até tarde. E quando acordar vou pegar no popó e vamos até casa dos meus pais. É o dia da mãe, hoje. Imprimi umas coisas que escrevi e vou dar à minha mãe. Vou levar as folhas mal engendradas dentro de uma revista de arquitectura, porque sou tão má filha que nem as encadernei. Quando chegar lá a casa, ela vai pôr tudo com muito cuidado dentro de uma mica, para não se estragarem, não obstante o meu Mãe, isso não tem mesmo nada de especial... ela Tudo vindo da parte da minha filha é especial. Estas folhas são um tesouro. Eu vou ficar, de repente, tão triste e embaraçada por ela que, por instantes, só me vai apetecer ir embora, esquecer o almoço, a minha mãe e as folhas que, sei eu tão bem, não têm mesmo nada de especial. Mas em vez disso, vou sentar-me à mesa e continuar com se nada se tivesse passado. A minha mãe vai estar tão contente que vai apontar para cada um dos pratos que confeccionou e explicar em pormenor, sabendo de antemão quais os pontos com que eu vou implicar. Vai dizer-me Estes não têm sal, mas são bons e saudáveis, prova, sempre podes pôr um pouco de molho de soja que fica bom ou Este queijo com ervas é muito bom, mas não é nada calórico, porque é feito com tofu. Podes comer à vontade. Vai estar tão contente por eu estar ali e de novo vou sentir-me tão envergonhada pelo facto de a razão de tanto contentamento ser eu, a pior filha do mundo, que vou acabar mesmo por ir-me embora, ainda nem serão três e meia da tarde. Quando sair de casa dos meus pais, vou visitar a minha casa, branca, creme e abandonada, por agora. Vou dormir até o quarto se encher de amarelo. E nessa altura vou levantar-me e vou correr na passadeira, mesmo assim, de roupa interior... e de chapéu de coco.