20 maio 2014

O nosso filho

Nesta altura do ano vê-se o nascer do sol na nossa sala iluminando de vermelho o rio, a ponte e os moinhos e o pôr do sol nos quartos pintando os aviões. 'A luz de madrugada é a melhor para fotografar' dizes-me por entre as paredes do canyon, 300 metros de altura, o rio a lamber as nossas cinturas e a curvar 50 metros adiante. O fotógrafo na curva do rio com o seu tripé, ambos dentro de água e pacientemente à espera. Estamos demasiado cansados para tirar fotografias agora, mas ficamos junto à janela, tu com ele nos braços, e esperamos que o sol nasça. Falo-te na luz. Tu sorris. Nunca nada foi tão bonito e intenso como agora.

Estudo-o pormenorizadamente porque hoje está a ser um dia bom. O remoinho do lado direito da testa (tu dizes que não, mas eu sei que o risco de cabelo dele é à direita), o nariz arrebitado, os lábios iguais aos meus (não sabemos a quem sai mas a boca é a minha), as mãos e os pés enormes (vai ser alto como o pai), a pele branca, o cabelo, a sobrancelhas e as pestanas dourados. 'Bolas, fizeram um bebé mesmo bonito', dizem os nossos amigos, a família, os vizinhos. Nós concordamos com os olhos rasos de água.

No verão dos meus 15 anos convenci-me que não iria ter filhos. Bastou para me convencer um fio, uma agulha e a palma da minha mão. Uma brincadeira de adolescentes que levei demasiado a sério, talvez porque sempre fui secretamente supersticiosa, foi o que me sobrou do pensamento mágico da infância, paciência. O destino traçado por esta brincadeira ali mesmo na praia, lugar habitualmente de tanta diversão, foi algo de trágico para mim. Isto porque, desde que me lembro, que sempre quis ser mãe. Aos sete anos, respondia de forma pouco ambiciosa à questão 'O que queres ser quando fores grande?' com uma só palavra 'Mãe' e mais tarde, apesar de ter aprendido outras respostas, o meu desejo mantinha-se, sempre se manteve, queria ser mãe, não havia nada a fazer, tudo o resto era secundário, sempre foi. Quando entrei na segunda década de vida, contudo, nada se proporcionou no sentido de ter uma família e devagarinho fui aceitando o meu destino, traçado anos antes. Devagarinho fui construindo as minhas rotinas longe do mundo das crianças e desenhando a minha vida com outras aventuras. Por cada relação que não funcionava, eu culpava a praia e a agulha. Quando conheci o P. o destino desfez-se e deu origem a um sem fim de sonhos e possibilidades. Depois veio o aborto e, por instantes, voltei a sentir a agulha inerte sobre a minha mão. Depois as complicações com esta gravidez e de novo a agulha. No bloco de partos o anestesista 'Esta menina está cheia de febre, alguém lhe meça a temperatura por favor', em mim a recordação da colega que perdeu o filho por causa de uma sepsis neonatal e a agulha outra vez, a impossibilidade deste sonho ser para mim. Como as desgraças que só acontecem aos outros. Um sonho que só acontece aos outros.

Finalmente senti-o molhado e quente sobre mim, contigo ao meu lado, sempre ao meu lado. Cá fora, tão real como tu e eu. Como o nascer do sol, o rio, a ponte e os moinhos. A luz da manhã ideal para fotografar. Os pores de sol nostálgicos. Os aviões. O nosso filho.