28 fevereiro 2011

Vivemos nas memórias uns dos outros e também das coisas e esquecemo-nos que nunca fomos assim tão giros, nem simpáticos, nem interessantes. O meu avô a corrigir-me os poemas com caneta de feltro vermelho, directamente no meu livro de apontamentos e as minhas lágrimas a encherem-me os olhos e só agora me lembro disto, situação tão impensável, o meu avô sempre tão bondoso, tão compreensivo, de perna esticada cruzada na varanda da casa da praia. Ele na varanda e eu aqui. Não sei porque me lembro disto agora. Eu aqui e é mais uma noite de vidro azul e elaboração de um currículo infindável, os últimos cinco anos a discorrerem à frente dos meus olhos em folhas A4 cheias de tabelas e um texto aborrecido de morte. Queria escrever sobre a minha aprendizagem pessoal no campo da música, do amor, dos amigos, dos países que conheci, mas em vez disso são tabelas e números e tudo aquilo que fiz enquanto pensava em fazer outras coisas. Fomos à Índia quando acabámos o curso e foi a viagem da minha vida e nunca me lembro daquela diarreia, os carris e a terra a olharem para mim através do buraco, tudo muito rápido e e eu naquela posição ridícula de tripé de duas pernas e a bater contra as paredes da casa-de-banho do comboio. Índia, a viagem da minha vida, mas nunca me lembro do meu ataque de pânico, quando vi pela primeira vez o fog a amanhecer em Delhi, cobrindo tudo e todos de uma amarelo espesso impenetrável. Foi a primeira vez que senti medo a sério na vida, se tirar aquela vez que comi uma embalagem inteira de comprimidos de flúor, aquilo sabia bem e os meus pais diziam que fazia bem, mas de repente ia morrer só porque tinha comido o que sabia bem e fazia bem. Demorei muito tempo a perceber muita coisa, mas também não escrevo isso no currículo. Digo que aprendi tudo de uma forma gradual e progressiva. Digo que ganhei autonomia, quando nem sei o que isso é, eu que sempre fui tão dependente, daqui a 40 anos ainda estarei a chamar pelo meu chefe e a perguntar-lhe quando é que afinal se devem misturar as claras em castelo. E ele, já do lado de lá, há de vir de batedeira na mão, pronto para acabar de fazer o bolo. Penso na primária, e como era bom subir às árvores, e como assim que tiver oportunidade o farei outra vez, definitivamente quando for ao Jardim do Campo Grande vou subir a uma árvore, nem que seja só uma e sentir-me só mais uma vez no topo do mundo, ainda que seja só a 30 centímetros do chão, que sempre tive vertigens. Mas a verdade é que o topo do mundo é agora. Este currículo de merda e saber que amanhã e depois de amanhã e todos os outros dias a seguir ele vai estar comigo e os meus sobrinhos vão crescer e nós vamos lá estar também com eles, todos a vivermos nas memórias uns dos outros muito mais giros, simpáticos e interessantes do que alguma vez fomos.

19 fevereiro 2011

EU: Já viste, pequenina, que lindo camião? ELA: Não é um camião, tia! É uma betoneira!

17 fevereiro 2011

Dado o meu infeliz infortúnio com animais de estimação, decidi investir no reino vegetal...

Sexto sentido

Sabemos que alguém é gay e não benzoca quando entramos numa sala cheia de homens e um deles diz: Ah, estás tão gira!!! Estás mesmo gira hoje! Não acham, rapazes?

Diferenças abismais entre géneros

EU: Então, como correu o café com o Manuel? ELE: Bem. EU: O que é que ele contou? ELE: Nada de especial. EU: Então e continua com a Rita? ELE: Mais ou menos. EU: Mais ou menos, como? ELE: Não sei, mais ou menos. EU: Mas perguntaste-lhe se continuava com ela? ELE: Sim. EU: E ele, o que é que respondeu? ELE: Mais ou menos. EU: Respondeu mais ou menos? ELE: Sim. EU: E depois? ELE: Depois nada. EU: Mas não lhe perguntaste o que é que era mais ou menos? ELE: Não. EU: Mas como é que isso é possível? ELE: Vou mostrar-te exactamente como foi a conversa: Então, continuas com a Rita? Resposta: Mais ou menos. Okay. Sempre há jogo esta noite? EU: Ah.
Tenho o pressentimento que a minha empregada assassinou a Sofia Patinhas...

10 fevereiro 2011

Com a sensibilidade que lhe é característica, a minha avó vendeu um dia a casa de Setúbal sem olhar para trás. A casa tinha pertencido ao meu bisavô, pai da minha avó e estava voltada para o cais. É possível que ele conseguisse observar a sua própria embarcação a partir de casa. Nessa casa nasceu a minha mãe e o meu tio. Queria saber como era a vida naquela casa. Que marca de cigarros fumava o meu bisavô, que conversas tinha com a mulher. De que cor era o seu barco e qual era o jornal que lia. A que cheirava a casa e como era o sofá da sala. Não sei nada sobre o meu bisavô, sobre a minha bisavó nem sobre a casa. Passo pela rua e sinto que quem lá mora agora deve ter herdado sem querer as recordações que deviam ser as minhas. Hoje é o aniversário da minha avó. Eu telefono-lhe e ela conta-me como foi o seu dia. Que foram a Fátima, que a irmã lhe ligou, que o cão foi ao médico e anda agora contrariado com pomada no ouvido e um cone de plástico ao pescoço. Quando estamos prestes a desligar, eu digo-lhe: Avó, não sei nada sobre ti. Como assim, querida? Não sei nada sobre ti, nem sobre os teus pais. Nunca me falaste da casa de Setúbal nem do teu casamento. Então ela começa: A igreja onde eu me casei ficava mesmo por detrás da casa, mas no dia do meu casamento o motorista deu a volta a dois quarteirões, antes de me deixar à porta da igreja. Quando o carro parou, reuniram-se tantas crianças à volta, que por momentos pensei que não ia conseguir sair. A minha mãe, que tinha mau feitio, criticou toda aquela ideia do carro e do motorista, mas o meu pai, que há anos que sonhava com aquele dia, sorriu apenas e encolheu os ombros. Assim foi o dia do meu casamento.

09 fevereiro 2011

The Next Three Days, de Paul Haggis (2010), baseado num filme francês de 2008 chamado Pour elle, de Fred Cavayé. Bolas, gostei muito. Fica agora por ver o original.
Há um template para fazer este tipo de filmes, não há? É que eu chego ao ponto de saber com uma hora e meia de avanço exactamente o que vai acontecer, por que ordem e ao som de que música. Quem me dera que escrever artigos científicos fosse tão fácil como foi de certeza escrever este argumento de #%&/$#...

08 fevereiro 2011

A minha entrada no mundo da música foi feita através dessa grande banda portuguesa dos anos 80 conhecida por Ana Faria e os Queijinhos Frescos. Se mais tarde acabaria por não gostar e até ridicularizar em público uma banda semelhante, aliás da Ana Faria também, os chamados Onda Choc, não foi por falta de coerência dos meus gostos nem traição às minhas origens. É que, se uns miúdos a cantarem covers com as suas vozes histéricas infantis, é delicioso, já adolescentes a fazerem o mesmo é apenas... ridículo. Ora estava eu no outro dia, já de lágrima no olho, a relembrar com nostalgia a minha banda de eleição dos meus primeiros oito anos de vida, quando me deparo com o Pedro Faria Gomes britânico. Agora descubram as diferenças...