10 fevereiro 2011

Com a sensibilidade que lhe é característica, a minha avó vendeu um dia a casa de Setúbal sem olhar para trás. A casa tinha pertencido ao meu bisavô, pai da minha avó e estava voltada para o cais. É possível que ele conseguisse observar a sua própria embarcação a partir de casa. Nessa casa nasceu a minha mãe e o meu tio. Queria saber como era a vida naquela casa. Que marca de cigarros fumava o meu bisavô, que conversas tinha com a mulher. De que cor era o seu barco e qual era o jornal que lia. A que cheirava a casa e como era o sofá da sala. Não sei nada sobre o meu bisavô, sobre a minha bisavó nem sobre a casa. Passo pela rua e sinto que quem lá mora agora deve ter herdado sem querer as recordações que deviam ser as minhas. Hoje é o aniversário da minha avó. Eu telefono-lhe e ela conta-me como foi o seu dia. Que foram a Fátima, que a irmã lhe ligou, que o cão foi ao médico e anda agora contrariado com pomada no ouvido e um cone de plástico ao pescoço. Quando estamos prestes a desligar, eu digo-lhe: Avó, não sei nada sobre ti. Como assim, querida? Não sei nada sobre ti, nem sobre os teus pais. Nunca me falaste da casa de Setúbal nem do teu casamento. Então ela começa: A igreja onde eu me casei ficava mesmo por detrás da casa, mas no dia do meu casamento o motorista deu a volta a dois quarteirões, antes de me deixar à porta da igreja. Quando o carro parou, reuniram-se tantas crianças à volta, que por momentos pensei que não ia conseguir sair. A minha mãe, que tinha mau feitio, criticou toda aquela ideia do carro e do motorista, mas o meu pai, que há anos que sonhava com aquele dia, sorriu apenas e encolheu os ombros. Assim foi o dia do meu casamento.

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