04 fevereiro 2016

Lembro-me de uma altura em que a diabetes era uma brincadeira. Cheguei a achar que não era uma doença, mais uma companhia à hipertensão arterial do meu avô. Por causa da hipertensão, que tinha provocado um AVC ao meu avô, deixando-o de cama durante meses, pernas e braços por mexer, a minha avó tinha cortado no consumo já parco de vinho do meu avô, limitando-o, mesmo em dias de festas, a um só copo, que até a mim, que era criança, me parecia pequeno e tinha cortado nas sardinhas, o único vício do meu avô, que mais não havia por onde cortar. Depois disto a hipertensão do meu avô tinha-se portado bem. Mas a diabetes não era grave, não provocava AVCs nem cortes na dieta e era motivo de risota nos almoços de Natal e do ano novo. A minha avó comia sempre uma fatia de bolo à revelia mas no fundo não fazia mal porque nada daquilo era sério. Algumas décadas depois morre e dizem-me que a causa de morte foi a diabetes. Até podia ter sido de velhice, a minha avó ia fazer 93 anos, mas não, foi a diabetes, aquela malandra. Até na morte lhe pregou esta partida. Se a vida fosse como um coro, ordenado por filas e tons de voz, nada disto acontecia, não assim pelo menos. Na minha obsessão por listas e por ordem, eu queria ter pertencido a um coro mas nunca consegui cantar, o que sempre me entristeceu. Depois de ter crescido e ter continuado a sentir-me criança, passei a olhar para a minha avó com outros olhos. Porque afinal o outro lado do espelho é igual a este lado. A minha avó, a minha mãe, o meu pai, filhos e crianças também de outros pais. Claro que perdi muito da criança que fui, mas os medos e as inseguranças cresceram comigo. Talvez não faça sentido, tal como a minha voz que nunca encaixou numa fila. A empregada da minha avó não sabia ler. Enquanto ela via um filme, nós sentados na mesma sala, víamos outro. Eu pergunto-me que filme estarão a viver os meus filhos e rezo para que não passem tão cedo para este lado do espelho que afinal é igual ao lado onde eles estão, mas um bocadinho mais triste. Paradoxalmente, porque a vida não é um coro, foi deste lado do espelho que nos conhecemos e que os tivemos e os criamos e temos o privilégio de estar com eles todos os dias. E não há felicidade maior do que essa.