28 dezembro 2010

Disarm

É hora de jantar e eu estou sentada sozinha no refeitório, as pernas flectidas uma sobre a outra. Estou com o fato do bloco, velho e remendado, que só na Anatomia de Grey é que os fatos são novos e bonitos. Aqui reciclamos (e bem, que o país está em crise). A primeira vez que ele me falou estava sentada nesta mesa, exactamente assim. Ele perguntou-me o que fazia eu ali sozinha, o prato vazio e os talheres sujos à minha frente. Disse-lhe que esperava um colega nosso que me tinha pedido para não comer sozinho. Ele disse Então tu és aquela que faz companhia! Papel importante no hospital! E sorriu com aquele sorriso aberto e confiante pelo qual, eu não sabia ainda, vir-me-ia a apaixonar perdidamente.

Hoje ouvi esta música na rádio

... mas uma versão deslavada de Cat Power. Aqui fica o original de Serge Gainsbourg. Superbe. Para o P.

26 dezembro 2010

Esquece lá o superficial e o profundo. Acho que encontrei a palavra para mim. Neurótica...
Tenho em mim tanto de superficial como de profundo e dedico exactamente o mesmo tempo a um que dedico ao outro. Invejo aqueles que optam por um só estilo de vida: superficial ou profundo. É menos confuso e mais coerente. Soubesse eu fazê-lo e faria o mesmo. Ser superficial tem a vantagem de trazer muita felicidade, uma felicidade inquestionável e nunca questionada, mas felicidade não obstante isso. Ser profundo não traz lá muita felicidade, mas traz estatuto e, convenhamos, é mais interessante e dá mais frutos. Já se ouviu falar nalgum poeta, escritor, dramaturgo, cantor de alto gabarito superficial? Não, claro que não. O problema é que, quando se é ambas as coisas, não se é nem uma coisa nem outra. Andamos às voltas com dúvidas, questões de vida e de morte, sentimentos contraditórios e amores descabidos, só para interrompermos os nossos belos pensamentos para nos lembrarmos de repente que falta comprar pão. E depois ainda somos capazes de demorar 30 minutos a decidir a qualidade do pão que vamos comprar. Não se chega a escrever o poema que estava mesmo na ponta da língua e qualquer pensamento profundo é rapidamente escoado pelo elevador abaixo a caminho do supermercado. Ser superficial e profundo ainda tem a desvantagem de confundir os outros e, nos piores casos, de os insultar. Suponhamos que estamos a ouvir e até a participar numa conversa profunda com alguém. É alguém que tem consideração por nós e nos julga profundos, ou não estaria a ter aquela conversa connosco. Neste cenário, haverá alguma coisa mais embaraçante do que a meio das lágrimas, do tom sério e do sobrolho franzido, soltar-se uma gargalhada ou acrescentar algo tremendamente superficial como Espero que amanhã esteja bom tempo. Não, pois não, e é um problema. Pessoas no hospital que parecem nunca se questionar olham para mim como aquela que é complicada e profunda. Por outro lado, amigos ou conhecidos meus profundos não compreendem a minha necessidade e dedicação a assuntos superficiais. E a verdade é que não me consigo concentrar no profundo tempo suficiente para ser profunda, nem contentar-me com o superficial, ao mesmo tempo que assuntos superficiais me comovem por vezes tanto que sou capaz de chorar por coisas tão ridículas como um poema tontinho escrito para mim pelo meu pai no dia de Natal . E assuntos sérios como a fome no mundo são-me tantas vezes, com um encolher de ombros, indiferentes. Como seria bom ter a inteligência e a persistência para ser profunda ou a simplicidade necessária para ser superficial e feliz. É que assim, a sério, não há paciência.

22 dezembro 2010

Às vezes, na falta do que fazer, fico na dúvida sobre quem sou. O conhecimento que carrego não sei quando nem onde o aprendi, nem sei dizer se é correcto. O nome pelo qual respondo parece-me sibilante e artificial. Os meus olhos no espelho olham outros olhos que não são os meus. De mim fica só a boca, igual à da minha irmã, da minha mãe e do meu avô, os meus pés feios e com calos e aquele sinalzinho castanho, com relevo, imediatamente à esquerda do umbigo. Fica, ainda, esta minha vontade constante de dormir e os poemas de Augusto Gil que em miúda recitava de cor. Ao meu lado, alguém por mim, com a minha boca e o meu sinal, os meus pés feios escondidos dentro de sapatos bonitos, fala com os colegas do trabalho sobre coisas importantes. E eu baixinho... Saira Santo António do Convento, a dar o seu passeio costumado. E a decorar, num tom rezado e lento, um cândido sermão sobre o pecado...

20 dezembro 2010

A minha contribuição para a comunidade científica médica não tem limites. Daqui a nada descubro a cura para o cancro, ou assim.

19 dezembro 2010

Domingo em casa a escrever artigos. Que merda. Isso e o aquecimento não funcionar. A casa gelada e ele longe. De que vale ter as unhas pintadas de vermelho, se estou enrolada neste cobertor velho, de fato-de-treino e pantufas. Mais pareço o boneco de neve de gorro sentado à minha frente. A sorrir para mim. Estúpido.

10 dezembro 2010

Para quem gostou da curta-metragem Hotel Chevalier, surge agora (admito que já tenha sido há um tempo, que pode ir desde a uns dias a vários anos) uma série com o irresistivelmente cómico Jason Schwartzman. Os diálogos estão geniais e os actores são fantásticos. Muito bom. Curiosamente, passa na MTV... Sem comentários.

Recentemente vistos

Des Hommes et des Dieux, de Xavier Beauvois. Ganhou o Grande Prémio do Júri do Festival de Cannes deste ano e concorre para os óscares na categoria de melhor filme estrangeiro. Cinco estrelas. Foi tal o impacto em mim, que quando saí do cinema, não sabia bem onde estava. Muito bonito fisicamente, muito bem interpretado e realizado. Faz pensar.Fresa y Chocolate, de Tomás Gutiérrez Alea. Filme cubano de 1993. Produzido com o apoio de Espanha e do México e realizado com o apoio, na fase final do filme, do realizador Juan Carlos Tabio (por doença do T. Gutiérrez Alea). Um filme sobre amizade, tolerância e uma realidade cubana fácil de amar e detestar ao mesmo tempo. Gostei muito, talvez por lá ter estado recentemente.

Descubra as diferenças

Instruções do Ikea
Instruções do lego

08 dezembro 2010

Uma dor de já não ser adolescente chegou essa manhã. Começou na garganta e foi descendo pela barriga até se instalar definitivamente no umbigo. Hoje estou aqui para ficar, disse a dor. Ela abanou-se, contorceu-se, riu-se, mas a dor não se mexeu e continuou a doer. Doeu não poder nunca mais dar o seu primeiro beijo, as suas primeiras carícias. Doeu não ser virgem. Doeu já ter tido vários parceiros. Doeu ter escolhido tratar de pessoas doentes. Doeu uma gota de sangue já não a fazer desmaiar. Doeu já não ser a primeira da turma. Doeu não estar sozinha à mesa com os pais e a irmã, só os quatro. Doeu não brincar às bonecas e não viver num mundo imaginário e mágico. Doeu nunca mais se ter sentido especial, nem bonita sequer.
Uma vez fez uma pequena filmagem em que perguntava às pessoas o que as fazia levantar da cama todos os dias. A maioria respondeu que era o despertador e a resposta dela seria Porque se um dia quebro a rotina, tenho medo de não conseguir voltar.

Cuba - non oficial mini guide

Ora, vamos começar pelo princípio. Apesar de se tratar de um país comunista, com relações cortadas com basicamente o mundo inteiro menos a China, não deixar os próprios habitantes sair do país, etc., sim, apesar disto, é preciso visto para ir a Cuba. Por isso o melhor é começarem por aí. É que o visto demora oito dias úteis a ser entregue e a mulher do embaixador não passa vistos de pijama a um domingo de manhã a toda a gente. Felizmente, passou para nós. Mas tivemos de dormir com ela. Bom, sigamos para a escolha da companhia aérea. Se acham que não existem companhias aéreas low cost que façam viagens de longa distância, é porque se esqueceram da Air Europa. O serviço não é mau, mas lembrem-se de comer que nem uns animais antes de embarcarem, porque o bolinho que nos servem durante as oito horas de viagem e o stock de comida disponível para comprar são indiscutivelmente insuficientes. Já agora, se tiverem mais de um metro e sessenta, esqueçam. Adiante. Antes do vôo e depois do visto, convém reservar a primeira noite. A melhor opção em Cuba, desde Viñales a Baracoa, é ficar numa das milhares de casas particulares reconhecidas pelo estado e que obedecem invariavelmente à regra dos três bs: bonitas, boas e baratas. Situadas em casa coloniais são, de resto como qualquer guia vos dirá, excepto talvez o American Express, o local ideal para mergulhar na realidade cubana e viajar até ao século XIX ao mesmo tempo. Nós ficámos em casa do Fábio e do Eugénio (já se vê que a filha do Raúl anda a fazer um bom trabalho) e a partir daí a nossa vida tornou-se muito mais fácil, com eles a marcarem todas as restantes noites por nós, porque, sim, em Cuba, todos têm um amigo ou um primo altamente recomendável e que gostam de ajudar. Para quem só se lembre de marcar a primeira noite na véspera da viajar, recomendamos que o faça por telefone, já que poucos cubanos têm email e os poucos que o têm passam o cabo dos trabalhos para o consultar e consequentemente só o fazem cerca de uma vez por semana. Portanto, marcada a primeira noite, as outras ficam facilmente resolvidas. No primeiro dia em Havana, por mais desapercebidos que se possam sentir, irão ser sempre detectados e abordados por vários guias que vos proporão visitas à cidade a preços imbatíveis. Esqueçam. Havana Vieja vê-se bem a pé e sozinho. Tudo o que é interessante está literalmente ao lado umas coisas das outras e, claro, cachapado nos nossos próprios guias. Não me perguntem porquê, mas no segundo dia já ninguém vem ter convosco. Durante os primeiros dias em Havana passeámos sem destino pela cidade antiga, apenas partilhando da vida vibrante dos cubanos e dos mojitos servidos por toda a parte. De dia, o sol brilha sobre as praças, os edifícios, as pessoas. E a noite pinta Havana de um encanto especial, não só porque deixa asas à imaginação para restaurar com os olhos todos aqueles edifícios em tempos gloriosos, mas também porque a luz escassa e aralanjada confere um cenário romântico difícil de encontrar noutro lugar. Ao longo do Malecon grupos de amigos, casais, guitarras e garrafas de rum alegram a cidade entristecida por anos de desleixo e repressão. A Casa da Música canta e dança pela noite dentro e nós cantamos e dançamos também e conhecemos cubanos e conversamos e queremos ser mais e viver mais desta cidade irresistível e cheia de contrastes. Mas acabamos por apanhar um autocarro da Via Azul e vamos até Viñales, uma reserva natural reconhecida pela Unesco, a oeste da vila, onde nos deparamos com uma beleza de cortar a respiração e enchemos os nossos corações durante três dias a passear por entre os mogotes e pelas grutas de bicicleta, a pé e a cavalo. Um pequeno alerta para quem quiser andar de bicicleta. Sabem aqueles calções ridículos com uma almofada no rabo? Exacto, esses. Convém levar. A idade de ficar com o rabinho assado já lá vai e, se quiserem usar a bicicleta sem estarem permanentemente de pé, tragam lá os calções, até porque as bicicletas não têm mudanças, são pesadas e puxam por nós. E antes de alugarem a bicicleta, certifiquem-se que está tudo em ordem para que não caiam na primeira curva que encontrem, corrente e pedais atirados para lados opostos da estrada, como aconteceu a nós. Sem comentários. Em Viñales convém ainda: 1) dormir na vila de Viñales e não em Pinar del Rio 2) não esquecer de ir um final de tarde até ao Hotel Jasmines, no alto de um monte junto à vila, com uma vista sensacional do parque natural e facilmente alcançável por táxi 3) passear pela vila, que é pequena e deliciosa, os cães famintos e coxos, as pessoas muito pobres mas especialmente simpáticas e jantar no Paladar Dago. À zona este da ilha decidimos ir de carro. As estradas são boas e estão razoavelmente indicadas, sendo preferível, contudo, devido à deficiente iluminação, conduzir durante o dia, não vá uma vaca lembrar-se de se atravessar no vosso caminho. Até porque as vacas, como tudo o resto em Cuba, pertencem ao estado e matar uma dá 10 anos de prisão, o que seria um disparate, quando há maneiras bem melhores de visitar Guantanamo (estou a brincar! Como sabem, a não ser que sejam muçulmanos e andem a berrar que querem pegar fogo ao Empire State Building, não vão tão cedo ver esse cantinho de Cuba). Visitámos de passagem Cienfuegos e dormimos em Trinidad. A quem tenha tempo, recomendamos que vá até Baracoa, que dizem ser uma região muito bonita. Gostámos de Trinidad, das galerias de arte, do pôr do sol no morro junto à capela, da mistura de cores das casas. Mas os aldeãos são muito pobres, desconfiados e fomos logo aldrabados no primeiro dia com aquela cena já conhecida: Ah, a casa onde vão ficar explodiu e eu conheço um sítio melhor, mas que na altura não sei porquê não pareceu tão óbvio. Isso mais uma praga de mosquitos fez com que tivéssemos ficado um pouco desiludidos e cansados e foi com esse espírito que seguimos até ao Cayo de Santa Maria, a norte da ilha, onde ninguém nos enganou, é certo, mas que acabou por se tornar a altura mais aborrecida da nossa viagem. Os resorts em Cuba funcionam todos com o regime tudo incluído, mas a nós fez-nos falta a simpatia e a beleza das casas coloniais e das famílias cubanas, com pequenos-almoços generosos e um mundo à volta para descobrir. Por isso, se no primeiro dia no Cayo de Santa Maria, comemos e bebemos a nosso belo prazer, no segundo dia estávamos já fartos e rumámos de volta a Havana que, por esta altura da viagem, já começava a saber a casa. De novo em Havana fizemos o passeio de arquitectura do Lonely Planet, inteligentemente, à noite, enquanto nos dirigíamos para o Paladar la Guarida, como iríamos em breve descobrir, provavelmente o melhor restaurante do mundo. Por entre as sombras e as ruas mal iluminadas, lá conseguimos ver os edifícios art deco e ficámos contentes. Ao mesmo tempo, fomos conhecendo a noite cubana das ruas e das ruelas, metendo conversa aqui e ali. O Paladar La Guarida, onde foi filmado o primeiro filme gay cubano, é recomendado por todos os guias e, de facto, é maravilhoso. Comam de tudo, olhem para tudo, bebem tudo. Ah, sim, e levem dinheiro, porque, apesar de não ser caro, se de facto experimentarem de tudo, acaba por vos custar cerca de 40 CUCs por pessoa e penso que eles não deixam ir embora toda a gente a quem falta uns CUCs para pagar a totalidade da factura. A nós, felizmente, deixaram. Mas para aumentar a fama de caluteiros dos tugas já bastamos nós. Contamos convosco para mudar isso. Ah, sim, pormenor importante, falta aqui falar do dinheiro. Em Cuba os turistas usam uma moeda, o CUC (peso cubano convertível), praticamente igual em quase tudo ao peso cubano, excepto no valor (1CUC=25pesos cubanos). É uma confusão e dá vontade de trocar na rua de uma forma ilegal CUCs por pesos cubanos, mas esta artimanha acaba por ser difícil, para além de que os pesos cubanos vindos dos turistas muitas vezes não são aceites e a pessoa acaba por se habituar, até porque nada é especialmente caro em Cuba, pelo menos por enquanto. Só é possível levantar cerca de 300 CUCs por dia e por cartão. Se o fizerem pelas máquinas multibanco, a comissão é muito menor do que aquela que é cobrada ao balcão nas casas de câmbio (CADECAs) ou pelo pagamento com o cartão de crédito (11% de comissão nos últimos dois casos). Se for para levantar dinheiro nas caixas de multibanco, convém que seja de dia e que esta esteja anexada a um banco (as tais CADECAs) onde possam reclamar caso a caixa coma o vosso cartão. Ah, e não se esqueçam de ficar com 25 CUCs por pessoa para pagar o imposto, caso queiram sair do país.