26 dezembro 2010

Tenho em mim tanto de superficial como de profundo e dedico exactamente o mesmo tempo a um que dedico ao outro. Invejo aqueles que optam por um só estilo de vida: superficial ou profundo. É menos confuso e mais coerente. Soubesse eu fazê-lo e faria o mesmo. Ser superficial tem a vantagem de trazer muita felicidade, uma felicidade inquestionável e nunca questionada, mas felicidade não obstante isso. Ser profundo não traz lá muita felicidade, mas traz estatuto e, convenhamos, é mais interessante e dá mais frutos. Já se ouviu falar nalgum poeta, escritor, dramaturgo, cantor de alto gabarito superficial? Não, claro que não. O problema é que, quando se é ambas as coisas, não se é nem uma coisa nem outra. Andamos às voltas com dúvidas, questões de vida e de morte, sentimentos contraditórios e amores descabidos, só para interrompermos os nossos belos pensamentos para nos lembrarmos de repente que falta comprar pão. E depois ainda somos capazes de demorar 30 minutos a decidir a qualidade do pão que vamos comprar. Não se chega a escrever o poema que estava mesmo na ponta da língua e qualquer pensamento profundo é rapidamente escoado pelo elevador abaixo a caminho do supermercado. Ser superficial e profundo ainda tem a desvantagem de confundir os outros e, nos piores casos, de os insultar. Suponhamos que estamos a ouvir e até a participar numa conversa profunda com alguém. É alguém que tem consideração por nós e nos julga profundos, ou não estaria a ter aquela conversa connosco. Neste cenário, haverá alguma coisa mais embaraçante do que a meio das lágrimas, do tom sério e do sobrolho franzido, soltar-se uma gargalhada ou acrescentar algo tremendamente superficial como Espero que amanhã esteja bom tempo. Não, pois não, e é um problema. Pessoas no hospital que parecem nunca se questionar olham para mim como aquela que é complicada e profunda. Por outro lado, amigos ou conhecidos meus profundos não compreendem a minha necessidade e dedicação a assuntos superficiais. E a verdade é que não me consigo concentrar no profundo tempo suficiente para ser profunda, nem contentar-me com o superficial, ao mesmo tempo que assuntos superficiais me comovem por vezes tanto que sou capaz de chorar por coisas tão ridículas como um poema tontinho escrito para mim pelo meu pai no dia de Natal . E assuntos sérios como a fome no mundo são-me tantas vezes, com um encolher de ombros, indiferentes. Como seria bom ter a inteligência e a persistência para ser profunda ou a simplicidade necessária para ser superficial e feliz. É que assim, a sério, não há paciência.

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