30 setembro 2010

Deitaram-se nas espreguiçadeiras semi-molhadas, mesmo assim, de pijama, e ficaram a olhar para os arranha-céus de Filadélfia. Bonita vista. Um pouco acima das suas cabeças, nuvens espessas e quentes passavam apressadas, dando uma agradável sensação de tontura a quem as olhasse de baixo. O iPod que ela lhe oferecera nos anos tocava na mesa entre eles uma colectânea de música francesa. De cada lado do iPod dois copos de vinho e a garrafa: Francis Ford Coppola Rosso que ele comprara para ela na véspera. Falaram do trabalho, das suas aspirações e dos seus medos, das suas frustrações. És muito exigente, disse-lhe ela. Tens de aprender a aceitar-te melhor. Recentemente ele tinha feito um estágio em hiperactividade e défice de atenção em adultos e por isso fazia amiúde esse diagnóstico: nela, nele, no amigo que visitariam no dia seguinte. Talvez se fizer ritalina… Ela encolheu os ombros resignada. No centro de Filadélfia há uma zona assinalada com um arco-íris por debaixo do nome das ruas. Foi lá que eles foram a seguir. Depois de alguma hesitação, todos os bares pareciam estar vazios àquela hora, acabaram por entrar num onde decorria um show de karoke. O cenário com o qual se depararam parecia a versão gay do Fame. Assistiram divertidos àquelas divas a cantar e a dançar, convencidos de que teriam ali reunidos boa parte dos alunos da escola de dança da zona. Havia três raparigas lésbicas no bar, que deram baile às divas, cantando e dançando no palco com entusiasmo. Depois apareceram mais raparigas e rapazes, que começaram a dançar e a beijar-se uns aos outros, indiscriminadamente. Olharam um para o outro, confusos e curiosos sobre quem estaria com quem. Fizeram apostas, que nenhum ganhou, e foram para casa. No dia seguinte, ela acordou com um telefonema para ir ter com ele ao hospital. A cantina do hospital ficava no 16º piso e de lá a mesma vista bonita sobre Filadélfia da véspera. Comeram coisas que só os americanos podiam ter inventado e que eu me recuso a descrever agora, porque ainda nem tomei o pequeno-almoço. Depois dela ter conhecido os seus colegas preferidos, ele baldou-se ao trabalho e durante o resto da tarde passearam pelos caminhos e cafés que, nos últimos três meses, ele tinha vindo devagarinho a conhecer e a tornar seus. Nessa noite foram jantar a casa de Ch., um amigo de C.. O apartamento fazia parte de uma antiga fábrica. O pé direito media cerca de 5 metros e umas escadas de ferro em caracol levavam a uma mezzanine onde ficava o quarto. Cá em baixo estendiam-se uma sala de estar, um mesa de jantar, a mesa de trabalho e uma pequena área dedicada a discos LP e à aparelhagem. As janelas percorriam toda aquela altura, de alto a baixo, enormes. O ex-dj era agora decorador de interiores. O seu apartamento tinha estado em revistas, como ele dizia com uma pontada de timidez e orgulho. Eles nunca tinham visto nada tão chique e adoraram tudo, desde a conversa, ao jantar, ao vinho, e, claro, ao terraço. Voltaram para casa tarde e sonhadores. Quando, na manhã seguinte, ela acordou, sentiu aquela ponta de ansiedade a que já se acostumara por acordar sozinha numa casa tão grande e silenciosa. Pensou no P. e a sensação de ansiedade passou. Percorreu o longo caminho até ao Museu de Arte, por entre o calor, a chuva e o vento e aterrou na sala de arte contemporânea, à frente dos Picassos e dos Braques, a ouvir Tori Amos e com o livro de Edward Hopper na mão.

27 setembro 2010

Subiram a rua que sobe da Musgareira para Camarate. Subiram pela estrada, que ali não existem passeios, e só pararam no alto, onde a curva da estrada se dissipa numas casinhas clandestinas. Lá em cima, para lá da cortina de arame farpado, estendem-se ao comprido quilómetros de pistas para serem percorridas por quem sabe voar. Ele explicou-lhe de onde vinham os aviões que aterravam e para que lado levantavam vôo. Explicou-lhe: amanhã partirás dali e daqui a 15 dias virei ver-te a regressar dali, dali mesmo. E, no dia seguinte, ela partiu. A viagem foi uma mistura de sono, pescoço dorido e números primos. Na alfândega sentia-se tão bem e apaixonada que esperou os 45 minutos sem se queixar, ouvindo o álbum dos Morphine e lendo o seu livro. Estava tão relaxada que se sentiu a flutuar por entre as centenas de pessoas que esperavam nas 10 filas da alfândega e não se importou que lhe tivessem passado à frente. No comboio meteu conversa com um padre e à porta da estação, ainda a ler, esperou pelo amigo sem pressa. Ele estava igual, afinal só tinham passado três meses. Abraçou-o com saudade e beijou-lhe a face esquerda. Nessa noite assistiram a um teatro à beira-rio através de uma cortina e puseram a conversa em dia. No dia seguinte, o amigo foi trabalhar e ela correu pelas ruas de Filadélfia, passando por gente, portas e ruas que até então só tinha visto em filmes.

25 setembro 2010

Se ele não tivesse aparecido com o blazer preferido dela, talvez as coisas se tivessem passado de forma diferente. Mas apareceu. Pior, por debaixo do blazer trazia a camisa branca e as jeans gastas a salientar o rabo que ela adorava. Não disse nada. Cruzou a sala, sentou-se no chão encostado ao puff, de frente para a janela e fumou um cigarro. Dias antes ela tinha-lhe pedido de volta a chave de casa e ele tinha deitado a escova de dentes fora. Tinham prometido casar em todas as igrejinhas do país, vezes sem conta e para sempre e depois, um dia, uma semana, aquela semana, as noites passadas em claro, desconfortáveis, dois estranhos. Então as chaves, a escova de dentes. E agora ele ali, com o blazer, a camisa branca e Keith Jarrett a tocar em Köln, ali tão perto.

19 setembro 2010

Para ouvir em repeat

Olá, o meu nome é Sofia e a música que eu ouço em repeat é Morning Theft do Jeff Buckley.

11 setembro 2010

Ontem fomos ao teatro. Já não ia ao teatro há anos e soube-me divinamente bem. O teatro foi o D. Maria II e a peça Um Eléctrico Chamado Desejo. Eu já tinha lido a peça e visto o filme. De facto, não me consigo cansar do Tennessee Williams. Adoro aqueles temas: o triângulo amoroso, as personagens densas e nunca nem boas, nem más, só geralmente muito complexas, tristes e confusas, os diálogos quase palpáveis e toda a trama relacional e familiar, que afinal são os temas mais importantes na vida da maior parte das pessoas. Muito forte, muito bom. E com uma encenação e interpretação tuga fantástica.
No dia em que os meus sobrinhos gémeos nasceram, ofereci à minha sobrinha mais velha uma prenda. Ela olhou para o embrulho desconfiada, franziu o seu sobrolho de 3 anos e concluiu triste: É para os bebés, não é? Durante a tarde quis ajudar os manos, lavando as chuchas centenas de vezes com água e sabão, dando beijinhos nas suas cabecinhas por entre os gritos de preocupação dos pais e cantando junto aos berços todo o seu repertório de músicas, desde o rei barrigudo ao menino em palhinhas deitado. Mas à noite, quando foi para casa e nem pai, nem mãe, nem manos a acompanharam, chorou no colo da avó até adormecer. Só tem 3 anos e já sofreu pela primeira vez a sério. E em silêncio.