29 agosto 2010
27 agosto 2010
No dia em que soube que se tinha apaixonado, tinham ido ver Irène, um filme de Alain Cavalier. Saíram da sala de cinema tão perturbados com o filme, que não disseram uma palavra até chegar ao carro. E depois não conseguiram ir para casa. Em vez disso, sentaram-se no Galeto a beber um copo. Um filme tão intenso não permitia que se continuasse a viver uma vida normal. Não permitia que no dia seguinte se voltasse para o hospital, indiferente. Não, era precisar festejar. A vida, a morte, o amor. Vamos ficar acordados toda a noite! disse ela, disse eu. Quando chegaram a casam fizeram amor e foi ao mesmo tempo tão violento, tão sereno e tão íntimo, que ela voltou a acreditar. No final fizeram promessas de amor e escreveram a sua história juntos no corpo um do outro e a noite não acabou nunca.
25 agosto 2010
19 agosto 2010
O meu pai costumava dizer-me que, se queria ajudar e não incomodar, devia sentar-me numa cadeira. Sempre achei este comentário um pouco ofensivo, mas como sou muito obediente, fazia o que ele me mandava. Agora olho em volta, lembro-me do meu pai, e acabo por me sentar num banco com cerca de 30 cm de altura que está escondido a um canto, abandonado. Sinto-me ridícula, sentada ali, quase ao nível do chão, mas este é o único lugar de toda a sala de bloco em que tenho a certeza de não incomodar ninguém. O cirurgião passa e sacode as mãos molhadas para cima de mim. Fico com a cara com gotas de água e restos de betatine. Crianças a brincar aos médicos, penso. Uma enfermeira pára, então, à minha frente e diz Não pode sair daí? Não vê que está a incomodar?! O meu plano falhou. Saio da sala e vou tomar um café. Odeio este estágio.
18 agosto 2010
O efeito da sangria começa a sentir-se, lembro-me dos morangos no meio do espumante, como estavam saborosos e sexys, e a minha cabeça cambaleia. Por fim, acabo por me encostar ao ombro dele, o pára-arranca do trânsito a embalar-nos. Quando levei a minha sobrinha à praia, tinha ordens expressas da minha irmã para não a deixara adormecer no carro na viagem de regresso. Fiz de tudo, falei com ela, brinquei, cantei, ataquei-a com cócegas, mas os seus olhinhos a revirarem e a cabeça a cair acabaram por triunfar e culminar num sono profundo. A sério que tentei, desculpei-me à minha irmã, enquanto lhe passava a criança adormecida para o colo. Deixa lá, eu sei que e difícil. Agora estou com tanto sono que já nem consigo ter a cabeça no ombro e caio no colo dele, adormecendo instantaneamente. Acordo com um curva da estrada mais arrebitada, mas mantenho os olhos fechados. O meu pai fazia um jogo com os irmãos, de olhos fechados tentavam adivinhar em que parte do caminho iam. A estrada era irregular e sinuosa. O meu pai conhecia a estrada de cor. Recapitulava-a nos sonhos, na escola, em casa. Estava pronto para o jogo, mas assim que fechou os olhos, as curvas tornaram-se enganadoras e troçaram dele. Perdeu o jogo e foi a chacota dos irmãos. Mantenho os olhos fechados e agora tenho a certeza que estou na segunda circular, a passar na bomba de gasolina da bp, a subir o viaduto, mas aí o carro pára e afinal estamos já à porta de casa. Acorda, princesinha. Chegámos.
12 agosto 2010
10 agosto 2010
Inícios são difíceis para mim. Olho para trás e são tantas as contradições que sei que as minhas memórias já não passam de construções. Já não consigo lembrar-me de praticamente nada como verdadeiramente aconteceu. Mas isto dos inícios lembro-me bem. O início no hospital foi muito difícil, o início da condução foi um suplício, o início da faculdade assustador. O início de qualquer relação um desastre. Mas agora estou com menos paciência e cada vez desejo menos inícios. Digo que não, fecho a porta antes que algo interessante entre por aqui adentro. Digo logo, com um sorriso céptico que se usa para as testemunhas de Jeová e para os seus folhetos sobre o amor de Deus, não, obrigada, não estou interessada. Um novo instrumento? Não, obrigada. Uma nova língua, um novo namorado, um novo meio de transporte? Não, obrigada. Não quero aprender mais nada sobre nada e não quero aprender a gostar de alguém. Tento recordar-me, mas não sei, não me lembro, quando é que me tornei assim tão aborrecida, preguiçosa, cansada, como uma velhinha, mas sem a menor sabedoria, sem artroses ou histórias engraçadas para contar e, sobretudo, sem netos.
09 agosto 2010
Just in time
A minha diva reapareceu, após meses de estar perdida no fundo da mala do meu carro, por entre processos do hospital e toalhas de praia e biquinis salgados. Estou DELIRANTE. Em honra a ela, esta vai ser já a próxima música a aprender a tocar no piano.
Nina Simone - Just in Time .mp3 | ||
Found at bee mp3 search engine |
06 agosto 2010
No dia seguinte ainda estou irritada com o jantar da véspera e, quando chego à garagem, lembro-me que estou sem carro, que o fui pôr na oficina na noite anterior. A próxima hora é passada ao telefone com a minha mãe, comigo à procura das chaves do velho Micra e a minha mãe desesperada É sempre a mesma coisa, nunca consegues encontrar nada. Acabo por descobrir que afinal o Micra está em casa da minha irmã e vou até lá de transportes, amaldiçoando o dia e mais uma vez o jantar da véspera. Apesar da confusão, chego ao hospital com apenas meia hora de atraso e quando me estou a vestir para entrar no bloco, dizem-me que o Professor está internado. Nem tenho tempo de me justificar, arranco a touca ridícula e as pantufas à Hobbit e dirigo-me ao piso 3 onde o Professor se encontra deitado, ofegante e me diz Nem imagina, Sofia, estou tão cansado. Sinto-me tão mal de o ver assim, que tenho de me sentar na cama e, por momentos, acho que vou desmaiar, por entre o soro e as malas do Professor. Ele tem pena, sabe que está em falta para comigo por não ter corrigido ainda os meus trabalhos. Digo-lhe que nem se atreva a pensar nisso, quero dizer-lhe para mandar os trabalhos para o $%&/, mas não posso dizer isso, porque o Professor é a pessoa mais gentil e bem educada que eu conheço e não ficaria bem dizer asneiras, sobretudo estando ele assim tão fragilizado. O que o Professor tem de fazer, digo-lhe, é o belo do Tazobac e descansar para se pôr bom o mais depressa possível. Ele sorri e aí lembra-se É verdade, não me quero armar em esperto, mas acho que o Tazobac não está a correr. Eu vou lá, rodo o controlador do conta-gotas e ele acrescenta Como será que agora vou tomar banho com estes fios todos? Mal consegue dizer a frase, fica ofegante a cada palavra que pronuncia e, de novo, sinto-me tão mal, que penso que vou desmaiar. Acabo por sair à pressa do quarto, envergonhada e, vou ver a PCR, que já está a descer. Quando regresso ao bloco, a cirurgia já vai no fim e dizem-me Ah, é verdade, aquela tua doente, da semana passada, lembras-te? Morreu ontem à noite. Fico parada, perplexa. E nesse dia saio mais cedo. Não volto a passar pelo quarto do Professor. Não quero saber do meu chefe que me vê a sair àquela hora do hospital. Pico o dedo. Se me quiserem despedir, estão à vontade.
05 agosto 2010
O sushi não está grande coisa, desculpa-se ele. Não toco no sushi, com o arroz espapaçado que me faz lembrar o arroz de polvo da cantina do hospital do outro dia, mas olho para a manga cortada em fatias por cima da bancada da cozinha e digo Não faz mal, enquanto planeio uma retirada subtil de uma fatia de manga para mais logo. Ando muito cansado, sabes. Pergunto-me a mim própria como pode ele estar cansado se está de férias e passa a vida na praia, em jantares e copos, enquanto eu, que estive as últimas 36h seguidas no hospital, estou aqui fresca que nem uma alface, mas acabo por não dizer nada e espero que ele continue. E, tu, como é? Muitos flirts? Não percebo imediatamente o intuito verdadeiro da pergunta, acho estranho ele estar interessado nos meus flirts, mas quando respondo Não, apenas me envolvi com um colega meu e ele contrapõe, Não te preocupes, eu já vou para cima de meia centena, percebo que de certa forma era ali mesmo que ele queria chegar. De que vale dormir com meia centena de raparigas, se não se puder falar ao desbarato sobre isso? Apesar de tudo, a resposta surte efeito em mim e pergunto incrédula Dormiste com 7 raparigas desde que acabámos?... Oito, responde ele a sorrir e agora percebo que está satisfeito com o rumo da conversa. Encolho os ombros conformada, mas ele continua. Que é uma pessoa que dá muito (eu: 5 minutos de cada vez?!), que muitas ficaram mesmo apaixonadas por ele, apesar de já se terem deitado com 20 tipos aos 20 anos, não, ele certamente não é só mais um na vida delas, que é uma pessoa muito emocional e apaixonada, que a vizinha também queria, pensava ele, não, vendo bem, tinha a certeza, que ela queria dormir com ele, mas ele recusou, porque era a vizinha e como ia ele fazer quando tivesse que passar de mão dada com outra nas escadas?, que a vida agora era difícil com tantos jantares, porque ele gosta de se empenhar e dar muito e por isso fica cansado, que as compras para o sushi de hoje foram feitas com a Mel, chama-se Melanie, mas ele gosta de a chamar de Mel, que o melhor amigo diz que ele é um grande maluco e que o Lux anda espectacular. Começo a ficar nauseada, sem perceber como foi possível ter um relacionamento de 8 meses com alguém que parece um atraso mental e a quem, fisicamente, me custou tanto a adaptar. Pergunto-me de onde pode ter ido ele buscar tanta auto-estima, quando o comum dos mortais se labuta diariamente para não se sentir a pessoa mais miserável do mundo. Depois penso racionalmente que estou revoltada e que, estando revoltada, não vale a pena pensar de todo, por isso fico a olhar para o vazio na direcção da cama, ao que ele pergunta Estás a sentir uma certa nostalgia, não é? Olho, surpreendida, para ele e digo com repugnância Claro que não!, mas quando me lembro que posso ter sido ofensiva, reparo que não há mesmo nada que possa ofender este homem. E, nesta altura, começo com pensamentos horríveis. Quero ofendê-lo, dizer-lhe que só namorei com ele por favor, que não senti nada quando acabámos, que me assutei a primeira vez que o vi nu, o corpo disforme pela paralisia braquial, o tórax em barril, a barriga e, claro, o estrabismo, que nunca me senti apaixonada, que o que precisava na altura era mesmo de um amigo que me salvasse da relação patológica que tu e eu tínhamos vivido recentemente, que conseguisse apagar as memórias tão intensas, boas e más, que eu guardava nossas. Quero dizer que ele nem nunca entendeu nenhuma piada minha, que não consegue dizer duas frases seguidas com sentido, que a conversa com ele foi sempre vazia, que ele nem nunca soube o quanto pensei em ti enquanto namorávamos, as nossas memórias, afinal e uma vez mais, sempre tão presentes. Que estava com ele porque ele me fazia rir, dava-me segurança, era querido e tratava-me bem. Mas, mais uma vez, não digo nada, pelo menos sobre isso. Tens o invólucro de um preservativo ao lado da cama, acabo por reparar. Ah, desculpa, que mal! E eu que até sou um tipo cuidadoso! e sorri. Já sei, que dá muito..., murmuro e encolho os ombros de novo. Quando se diz uma palavra muitas vezes, como sapato, por exemplo, não sentes que perde o significado, pergunto-lhe. Lança um olhar interrogador na minha direcção. Estou a falar do sexo, esclareço. Quando o fazes assim tantas vezes, não sentes que perde o significado? Pergunta idiota para se fazer a um homem, mas eu sem querer já a fiz e agora já não posso fazer nada, se não calar-me e aguardar a resposta dele. Às vezes é um bocadinho cansativo, diz ele, do tipo, ah, lá vou eu outra vez. Por isso tento ficar 3 dias por semana sozinho em casa. Digo que o compreendo, que eu própria estou cansada só de o ouvir falar em todas as pessoas com quem anda a dormir, mas ele não percebe a ironia a replica E ainda nem ouviste nada! Ainda nem te contei nem metade! Sorrio com um sorriso triste. Sinto-me uma merda. Fui o número 42, em nada diferente do número 41 ou do 43. Não mais do que um degrau na escala da contagem da quarta dezena, que se prolongou por mais do que uma noite, apenas porque ele é uma pessoa que dá muito e foi tudo um favor que ele me fez. E penso que, apesar das promessas dele, O próximo sushi vai ficar melhor, vais ver!, e das minha promessas, Tenho a certeza que vamos ficar amigos!, não mais volto a jantar com um ex-namorado megalómano que demora apenas duas horas a destruir dois meses de cuidadosa reabilitação da minha auto-estima.
04 agosto 2010
Debaixo dos lençóis
Em caracteres vermelhos iluminados está escrito o número 86. Uma série de cadeiras vazias alinham-se em frente ao mostrador e, na última fila, encontro-me eu sentada, de pernas cruzadas sobre a cadeira, em posição de meditação. Estou no corredor da farmácia, o único lugar no hospital onde, a partir do final da tarde, posso estar completamente sozinha. O único lugar onde o meu chefe não me encontra. Por isso adoro este corredor. Há 3 anos que me sento aqui, às vezes por 5 minutos apenas. É aqui que eu como os meus chocolates, faço telefonemas e inspecciono a depilação das pernas. Foi aqui que chorei inconsolavelmente quando, há 3 anos atrás, pensei em desistir do hospital. Foi aqui que chorei das múltiplas vezes que acabámos. É aqui que eu rio ao telefone com a A. e ficamos a saber das novidades que cada uma tem para contar à outra. Como um miúdo que se esconde debaixo dos lençóis e, assim, se sente protegido, eu escondo-me neste corredor, alheia ao facto de que, descubro isso hoje..., todos os doentes do quarto 3 do piso 2 me podem ver e, provavelmente ouvir, gratos pelo entretenimento que lhes proporciono, enquanto fazem a sua hemodiálise.
Subscrever:
Mensagens (Atom)