A cinza incandescente do cigarro cai sobre o meu braço. Fico a olhar para aquele bocadinho de chama, até que a pele começa a derreter e eu começo a chorar. Olho para cima e ela repara, finalmente, em mim. Apercebe-se do que aconteceu e, ainda com o cigarro na mão, sacode a cinza, molha a zona lesada com cuspo e dá um beijinho por cima. Pronto, já passou. Trinta anos depois aqui estou eu. Tenho a cicatriz no local onde a cinza caiu e estou de pé por detrás do portão verde da minha antiga escola primária. Instintivamente, o meu olhar procura por ela. Queria ouvir-lhe a voz, saber como ela pensava, que tipo de mulher era que eu gostava tanto em miúda. Mas ela já morreu há muitos anos, restam-me algumas recordações de criança e uma cara séria numa foto e quem vem ter comigo é uma senhora dos seus 40 anos, cabelo curto pintado de cor de cortiça, uma bata que cobre tudo do pescoço aos tornozelos e sob a qual saem dois braços e duas pernas gordas, simpáticas. Fico a olhar para ela. Não digo nada. Espera aí, diz ela, eu conheço esta carinha. Ora pois, se não é a Sofia! Que linda e elegante estás tu! Lembras-te aqui da Berta? Lembro-me dela, pois. Não deixes a porta aberta, Berta! gritavam os miúdos todos. Não devia ter mais de 20 anos naquela altura e eu já a achava velha. Uma dia fiz cocó nas calças de fato-de-treino. A minha mãe tinha dito que fazer cocó era o tipo de coisas que se faziam em casa, por isso aguentei, aguentei, até não aguentar mais. Sentei-me junto ao portão verde a chorar, sem saber o que fazer, certa que fazer cocó não era certamente o tipo de coisas que se faziam nas calças. A Berta reparou em mim e em três tempos estava lavada e com umas calças de fato-de-treino novas, tiradas de um grande caixote vermelho que dizia PERDIDOS e ACHADOS. Não te preocupes, aqui a Berta não conta a ninguém. Quando se partilha a nossa infância com um adulto, sabemos que ele sabe tantos pormenores íntimos sobre nós, que se torna constrangedor. Digo que sim, que me lembro dela e baixo a cabeça, envergonhada. Vim buscar a minha sobrinha, deve estar na sala dos três anos. Vou até lá com ela. Trinta miúdos de meio metro de altura correm e berram pela sala. A minha sobrinha é a única que está sentada à mesa, muito séria, a comer um iogurte. Repara logo em mim. Não diz nada, não sorri, não chora, não faz caretas, não se mexe. Fica só a olhar fixamente para mim, até que eu vou para o pé dela, passo-lhe a mão pelos cabelos e digo: Sabes que a tia também andou nesta escola? Ela começa finalmente a mexer, sorri e abraça-me com um beijo molhado na face. Dou-lhe o resto do iogurte e, no final, ela corre para ir buscar o casaco e a mochila que estão pendurados num cabide mínimo na parede sobre o nome dela. Vamos ter com a mamã, o papá, os manos? pergunta-me. Mamã, papá, mana e mano, acrescenta, 1,2,3,4!
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