27 fevereiro 2013
Quando estava triste ou cansado, nunca cheguei a perceber bem, o meu pai adoptava uma de duas posturas físicas que me irritavam especialmente, sobretudo pela maneira súbita e imprevisível como elas se instalavam. Estas posturas determinavam o início de um período de introspecção cuja duração era inconstante e cujo acesso nos estava vedado. Às vezes conseguia trazê-lo de volta perguntando enervada 'Pai, o que é que aconteceu?!', mas a maior parte das vezes ele interrompia a sua postura apenas para dar uma resposta vaga e aparentemente surpreendida por o resto do mundo continuar ali: eu, a minha irmã, a minha mãe, a travessa do esparguete, os talheres por arrumar sobre o prato vazio. Depois voltava a segurar a cabeça entre as mãos, os cotovelos sobre a mesa, de volta ao seu mundo. Em alternativa, e isto é comum aos quatro irmãos (o meu pai e os meus três tios), começava de repente a andar de um lado para o outro da casa, as mãos na cintura sem convicção a descaírem ligeiramente pelas coxas e a cabeça estranhamente flectida para a frente, o olhar sombrio. São o tipo de coisas que só presenciamos quando vivemos muito de perto com alguém. Hoje quando estou com o meu pai, ele está sempre bem disposto e fica feliz por me ver, não foge para o seu mundo tão distante do meu. Mas eu passei a ser como ele. Em alturas em que estou triste ou cansada, esteja no trabalho ou em casa, mas sobretudo no trabalho, refugio-me sem sequer dar por isso exactamente nas mesmas posições que antes tanto me irritavam. Literalmente não me apercebo de que desliguei de repente do mundo naquelas posições, que são mais muros do que posturas, até que alguém, estranhando, pergunta 'Está tudo bem?!' e eu vejo que me tornei igual ao meu pai.
25 fevereiro 2013
Domingo errático em saída de banco, a vaguear ao sabor de horários desfasados e caprichos de quem perdeu o seu sábado. Pequeno-almoço no Pão de Canela, baba de camelo para o almoço, filme no sofá e pelo meio uns sonos e sonhos dispersos nos braços dele, na nossa cápsula. Não quero por nada que este domingo acabe, à uma da manhã ainda pomos mais uma música a tocar e lutamos contra o sono. Durante a noite sonho com judeus e fugas dos nazis, sou muito sugestionável pelos filmes que vejo e acabo de ver A Lista de Schindler, demorei 10 anos a ter coragem para ver o filme, onde já se viu tamanha idiotice, e agora a noite é péssima e acordo finalmente às 7h para mais uma solitária e trabalhosa segunda-feira.
20 fevereiro 2013
Fomos ver O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão no Teatro Meridional. O texto é do escritor belga Éric-Emmanuel Schmitt. A encenação é de Miguel Seabra, cuja interpretação é também extraordinária e a música de Rui Rebelo. Gostei tanto que até chorei. Na livraria encontrei outro livro do mesmo autor: Óscar e a Senhora Cor de Rosa. Estava tão bonito, que voltei a chorar.
Há miúdos que encontram um refúgio e segurança inabaláveis por debaixo dos lençóis. Levam para lá os seus brinquedos preferidos, livros, chocolates e uma lanterna. Debaixo dos lençóis ficam a salvo dos pesadelos, dos monstros, das tempestades e, claro, dos adultos. É um mundo mágico com barreiras invisíveis e apenas interrompido pela hora de jantar. Eu era um desses miúdos. Agora que cresci já não me escondo por debaixo dos lençóis, viajo numa cápsula... com o P. O efeito é muito semelhante.
15 fevereiro 2013
A minha mãe costumava dizer à minha irmã que ela havia de ter uma filha como ela. Sempre achei uma praga disparatada para se rogar a uma criança ou mesmo a uma adolescente, mas imagino agora em adulta que era simples desespero da parte da minha mãe. A minha irmã sempre foi muito reinvidicativa e também muito inteligente e fantástica a argumentar. E isto era verdade quer se tratasse de defender, por exemplo, um amigo (geralmente eu...), quer se tratasse de lutar para obter umas sabrinas. Eu, ao contrário da minha irmã, evitava o conflito e, quando acontecia haver uma discussão, o resultado era desastroso para mim, comigo a bloquear sem dizer nada e a acabar por ficar cada vez mais ansiosa até me ir embora frustrada a bater com as portas. Décadas depois, a praga da minha mãe concretizou-se, finalmente, na miúda extraordinária de palmo e meio que é a minha sobrinha mais velha. Com apenas cinco anos, tem o pé do pai, a cara da tia e o feitio e inteligência da mãe. Finalmente a minha irmã tem um adversário à altura. Coitada. Visto de fora, contudo, é delicioso.
03 fevereiro 2013
Na minha mesa de cabeceira agora...
De cada vez que me sinto emocionantemente frágil, tenho tendência para reler As Confissões de Frei Abóbora, livro do autor brasileiro José Mauro de Vasconcelos. Este é um hábito que já vem dos meus tempos de adolescência de maneira que já vou sabendo o livro de cor. Tão forte se tornou este hábito, que uma vez, já lá vão uns anos, estava eu a morar em Londres, lembro-me de recitar na minha cabeça passagens inteiras do livro, que tinha ficado em Lisboa. Durante uns dias adormeci sempre assim. Andava meio em baixo...
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