De cama doente. Pela terceira vez este ano. Os três episódios são claramente de natureza viral e não teriam a mínima importância, até porque os dois primeiros calharam respectivamente nas férias e num fim-de-semana, se não tivesse sido pelo facto de me ter convencido previamente a estes três episódios de que tinha um linfoma e tais síndromes gripais abalarem a minha confiança face à exclusão definitiva desse diagnóstico terrível, apesar das análises que fiz na altura da raiz do cabelo à ponta da unha terem excluído nem uma anemia que fosse. A culpa inicial do linfoma foi, na verdade, do edredon. Quando éramos miúdos, os cobertores eram pesados, tínhamos de os empilhar uns sobre os outros e mesmo assim passávamos frio nos primeiros minutos em que nos enfiávamos na cama, a não ser que os lençóis fossem de flanela ou tivéssemos um saco de água quente. Agora os edredons são leves, mas potencialmente tão quentes que podíamos dormir ao relento no Inverno e ter calor. O linfoma veio, portanto, do edredon. Desde Dezembro tive suores nocturnos de tal maneira que tinha de trocar diariamente o pijama e os lençóis da cama a meio da noite e, apesar de não ter linfadenopatias e de andar na melhor forma física de sempre desde que me conheço, dois meses depois de tanto suor nocturno conclui finalmente que estava gravemente doente. Depois disso foram as análises, o alívio, o edredon e agora de cama pela terceira vez em menos de mês e meio.
Talvez por ter estado tantas vezes doente ultimamente, tenho andado particularmente pensativa, que é como quem diz, neurótica. Olho à minha volta no hospital e espanto-me, não por eu ser neurótica, mas por mais ninguém o ser ou aparentar ser. Todos parecem satisfeitos com conversas desinteressantes, justificações ridículas das razões pelas quais são vítimas e boas pessoas, conversas sobre temas dos quais falam sem saber e sem sequer querer ouvir e ninguém se questiona sobre o que andamos por aqui a fazer, qual o sentido da vida, da morte, da mediocridade senão científica, pelo menos moral. Ninguém se questiona sobre os doentes que não conseguimos tratar em idades tão jovens, o sentido dessas vidas que não conseguimos salvar, não de velhinhos preenchidos com uma vida cheia de seja o que for, mas de crianças e pais vazios, roubados do que mereciam ter e do que de resto tantos outros parecem usufruir com tanta facilidade. Espanta-me que os meus colegas fiquem contentes só por terem oportunidade de discutir guidelines ao almoço. Não é uma crítica que lhes faço. Sei bem que me apaixono por assuntos bem mais supérfluos do que as guidelines. Apaixono-me, aliás, bem mais frequentemente pelo supérfluo do que pelo profundo. E, assim, passo metade do meu tempo a sofrer com dúvidas existenciais e a outra metade maravilhada com esses pormenores supérfluos de que falo, pormenores por todo o lado: na natureza, nos outros, nos momentos, nas músicas, nos filmes, nos livros. Mas também pormenores simplesmente ridículos, esses também me encantam: o prazer de cortar as unhas, usar fio dentário, comer aquele leite creme, tomar um bom banho, rir-me de determinada piada vezes sem conta. O único sítio onde eu passo pouco tempo é mesmo aqui na terra com os pés assentes onde os têm os meus colegas e aborreço-me com facilidade e cada vez com menos inibição social não disfarço o meu aborrecimento, o que é um handicap péssimo no trabalho. O tempo que passo a viver a mesma realidade que os outros vivem é apenas o suficiente para me permitir sobreviver, manter o meu trabalho, aprender algumas coisas. Ao mesmo tempo, nunca fui tão feliz e me senti tão preenchida na minha vida amorosa e sei que é esse amor e o amor pela minha família e pelos meus escassos amigos que dá sentido à minha vida e me impede de cair num estupor que de resto seria absurdo. Mas tudo o mais, não consigo explicar e isso incomoda-me. Entretanto, vou lendo livros que alimentam as minhas angústias, ao mesmo tempo que me consolam porque me sinto menos sozinha nas minhas dúvidas existenciais. O último desses livros foi As Palavras, de Sartre. Uma análise autobiográfica, escrita aos 60 e picos de idade, da sua vida... até aos 12 anos. Até aos 12 anos... Eu tinha lido O Existencialismo é um Humanismo, porque era leitura obrigatória no secundário, pelo menos na escola que frequentei. Gostei muito do livro na altura, mas claramente estava noutra. Fui uma adolescente feliz e inocente e todas as dúvidas sobre a vida vieram já depois da faculdade e atingiram-me como uma bomba na forma de ataques de pânico. Essa fase aguda passou, mas ficaram as dúvidas. Agora ao ler As Palavras, vou-me identificando com uma série de reflexões e análises que eu própria seria incapaz de fazer sozinha, mas que me é fácil reconhecer e me identificar com elas n'As Palavras.
1 comentário:
não querendo bater mais na "neuroticazinha", miúda, tu transportas-te muito bem não só para as nuvens mas também para as palavras
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