02 janeiro 2014
O meu avô adorava contar histórias, sobretudo as que tinham tido lugar em Silves há mais de 90 anos e que ele próprio, as irmãs, os pais e os primos tinham protagonizado. A minha avó não gostava de ouvir estas histórias, ou porque já as ouvira demasiadas vezes ou porque ela própria não dava importância ao passado, nem ao seu próprio, quanto mais ao do marido. A vida da minha avó rodava em torno do aqui e agora: as novidades das vizinhas, o preço do peixe na praça, a hora de chegada a casa de cada um de nós. A minha avó ser tão prática era de grande utilidade para nós, netas, porque nos permitia viver o dia-a-dia daqueles meses de Julho de forma saudável e sem sobressaltos. Deitávamo-nos cedo, comíamos carapaus assados diariamente, íamos à praia às horas correctas e nunca nos esquecíamos do creme protector. Mas o dia-a-dia é um mundo cruel para os nostálgicos. Nas suas tarefas e preocupações diárias, a minha avó nunca incluía ouvir o meu avô e, quando calhava estar por perto quando ele se punha a recordar, interrompia-o sem cerimónia lembrando-o que aquelas memórias não tinham importância nenhuma. Nós contestávamos, porque adorávamos ouvi-lo. As histórias do meu avô evocavam uma pobreza que me era difícil de imaginar não só porque já tinha conhecido o meu avô com casa própria e dinheiro no banco mas também porque eu própria nunca passara por dificuldades. Tratavam de temas como a falta de sapatos, os favores e a avareza do padrinho da aldeia, as traquinices na escola e a gripe de 1918. Em relação à ultima, comentava Corria descalço pelas ruas empoeiradas e quando via o sinal numa das portas, voltava para casa e gritava 'Lá foi mais um! Desta vez a filha do senhor Armando!' E assim ia fazendo a contabilidade dos mortos. Eu imaginava Silves uma aldeia povoada de Varelas, os dias sempre quentes e o meu avô divertido e reguila, tal qual o Tom Sawyer do Rio Arade. É que, por mais trágicas que as histórias fossem, eram paradoxalmente divertidíssimas. Nós ríamo-nos sempre, mas o meu avô era quem ria mais, de tal forma que, se por acaso não se tivesse dado conta antes, era na altura das gargalhadas que a minha avó era atraída da cozinha para a sala e o vinha repreender e mandar calar. Mas ele continuava a rir em silêncio ainda com lágrimas nos olhos, genuinamente divertido, como o miúdo reguila que nunca deixou de ser.
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