29 dezembro 2016

Costumava falar demais. Muitas vezes por estar feliz. Outras vezes por estar nervosa. As palavras eram leves e divertidas. Facilmente uma piada gerava a piada seguinte e passava assim longas horas entrelaçando piadas uma na outra. As palavras eram leves mas as consequências da minha conversa fácil eram por vezes pesadas. Agora são as palavras que são pesadas. A piada acaba antes mesmo de encontrar palavras para a começar. Agora às vezes ouço por interesse. Outras por não ter alternativa. Mas as palavras pesadas ajudaram-me a ser mais calma. Mais ponderada. A observar melhor os outros. As consequências deste meu silencio observador são leves. As palavras pesadas são estranhamente libertadoras. E passo assim longas horas entrelaçando silêncios um no outro.

07 agosto 2016

Tudo o resto é válido, mas eu procuro o mais bonito. Não em mim. Nunca me maquilhei. Nunca usei saltos. Aos 20 anos comprei a umas jardineiras largas unissexo. Da Levi's. O elogio da minha melhor amiga quando éramos adolescentes induziu-me agradavelmente em erro Tudo te fica bem. Mesmo aquelas jardineiras largas da Levi's. A minha irma e a minha mãe contribuíram para esta distorção agradável da minha auto-estima. E não pensei mais nisso. Mas claro que não fica. Não fica aos 15 anos, muito menos fica aos 37. Mas a vida não sou eu, está por todo o lado à minha volta e transborda de beleza, começando pelos meus bebés e acabando em todos os livros, filmes e lugares que quero partilhar com eles. Queria tanto que eles crescessem assim, lado a lado com o lado mais bonito da vida.

31 julho 2016

É possível ser-se mais simples. Menos obsessivo. E não é preciso ser-se mais estúpido. Basta ser-se menos neurótico. Para ser mais simples eu preciso de obsessivamente esforçar-me por ser mais simples. Para algumas pessoas isso ocorre de uma forma natural. Natural. Não achar diariamente que se vai morrer no dia seguinte. Nao adormecer sempre com a angústia de querer deixar tudo preparado. Tudo preparado. Como a personagem do filme 'My life without me'. As cassetes gravadas para as filhas, uma cassete por filha por cada aniversário até cada uma fazer 18 anos. Tudo preparado. Não há personalidade obsessiva que consiga dar conta desse recado.

14 maio 2016

Foi tudo sempre tão fácil com a Rita que tenho tendência para romantizar algumas recordações. Ia jurar, por exemplo, que não chorou quando nasceu. No dia 26 de Setembro, sem trabalho de parto, veio direitinha para os meus braços, ainda em posição fetal. Ficou aninhada no meu peito, como se nunca tivesse saído de dentro de mim e ficámos horas assim, na companhia uma da outra. Nenhuma enfermeira veio para a vestir. Deixaram-nos sozinhas, porque momentos assim não se interrompem por causa de um babygrow.

04 fevereiro 2016

Lembro-me de uma altura em que a diabetes era uma brincadeira. Cheguei a achar que não era uma doença, mais uma companhia à hipertensão arterial do meu avô. Por causa da hipertensão, que tinha provocado um AVC ao meu avô, deixando-o de cama durante meses, pernas e braços por mexer, a minha avó tinha cortado no consumo já parco de vinho do meu avô, limitando-o, mesmo em dias de festas, a um só copo, que até a mim, que era criança, me parecia pequeno e tinha cortado nas sardinhas, o único vício do meu avô, que mais não havia por onde cortar. Depois disto a hipertensão do meu avô tinha-se portado bem. Mas a diabetes não era grave, não provocava AVCs nem cortes na dieta e era motivo de risota nos almoços de Natal e do ano novo. A minha avó comia sempre uma fatia de bolo à revelia mas no fundo não fazia mal porque nada daquilo era sério. Algumas décadas depois morre e dizem-me que a causa de morte foi a diabetes. Até podia ter sido de velhice, a minha avó ia fazer 93 anos, mas não, foi a diabetes, aquela malandra. Até na morte lhe pregou esta partida. Se a vida fosse como um coro, ordenado por filas e tons de voz, nada disto acontecia, não assim pelo menos. Na minha obsessão por listas e por ordem, eu queria ter pertencido a um coro mas nunca consegui cantar, o que sempre me entristeceu. Depois de ter crescido e ter continuado a sentir-me criança, passei a olhar para a minha avó com outros olhos. Porque afinal o outro lado do espelho é igual a este lado. A minha avó, a minha mãe, o meu pai, filhos e crianças também de outros pais. Claro que perdi muito da criança que fui, mas os medos e as inseguranças cresceram comigo. Talvez não faça sentido, tal como a minha voz que nunca encaixou numa fila. A empregada da minha avó não sabia ler. Enquanto ela via um filme, nós sentados na mesma sala, víamos outro. Eu pergunto-me que filme estarão a viver os meus filhos e rezo para que não passem tão cedo para este lado do espelho que afinal é igual ao lado onde eles estão, mas um bocadinho mais triste. Paradoxalmente, porque a vida não é um coro, foi deste lado do espelho que nos conhecemos e que os tivemos e os criamos e temos o privilégio de estar com eles todos os dias. E não há felicidade maior do que essa.