Os meus avós rezavam o terço todas as noites. Eu estava com eles durante os meses de Verão. Via-os à noite, na varanda, que era pequena e dava apenas de esguelha para o mar - uma tira azul e estreita ao fundo da rua. O meu avô preferia esta varanda à nossa varanda. A nossa varanda era grande e estava debruçada sobre o mar, como um barco. Nós adorávamo-la. A varanda do meu avô era pequena e estava debruçada sobre três ruas. Encontrava-se à entrada de Armação de Pêra, motivo de particular orgulho para o meu avô, o motivo para mim ainda misterioso. Era da sua varanda, que o meu avô via, ao longo dos meses de Verão, as camionetas e os carros que, antigamente, viajavam ao ritmo das quinzenas. Via a pizzaria à qual nunca ia, a casa nobre antiga na esquina e, finalmente, via o mar, no fundo de uma das ruas, a tal tira azul por detrás do casino velho.
O meu avô passava grande parte do seu dia na varanda. Face serena, muitas vezes a sorrir ligeiramente. Sentava-se numa cadeira de plástico, com um formidável apoio de costas. Adorava aquela cadeira. Usava calções e os pés deixava-os a repousar num banco ou numa cadeira em frente à sua. Tinha as pernas magras e sem pelos, notoriamente brancas, sobretudo quando comparadas com as da minha avó, morenas do sol. As mãos deixava-as entrelaçadas no colo ou ficavam a segurar um livro, tipicamente um western. À noite, depois de secar e guardar a loiça que a minha avó lavava, arrumava as cadeiras da mesa, caracteristicamente na diagonal. Punha o pano bordado a crochê e a taça com a fruta decorativa no centro da mesa e ia sentar-se na varanda. A minha avó ficava sempre a arrumar mais algumas coisas, sentava-se depois uns minutos a ver televisão e ia ter a seguir com o meu avô à varanda. Nessa altura rezavam, então, o terço.
A minha avó, muito direita, terço no regaço, corpo balançando muito subtilmente para trás e para diante. O meu avô, com a sua postura habitual, pernas esticadas, mãos entrelaçadas.
Os dois partilhando a mesma fé, reforçando os laços que os uniam. Meditando.
Nunca pediam que eu rezasse com eles e eu, habitualmente, também não o fazia. Eu gostava de os observar.
Durante muitos anos, o ritual deles fazia parte do meu ritual de Verão e contribuia para o sentimento tão pleno de paz que eu sempre senti quando estava com eles. Os meus avós davam-me muito espaço e eu saboreava cada minuto daqueles dias compridos. Sestas longas, tardes no quarto a ensaiar desmaios ou mortes trágicas, a ler, a ouvir música. Comíamos diariamente carapaus assados, que nós adorávamos e que acompanhávamos com pão de São Marcos e salada de tomate algarvia. E havia ainda aqueles banhos intermináveis no mar. Durante muitos anos, aguardei, ora com ansiedade, ora com melancolia as férias de Verão.
O Pedro ofereceu-me um telefone novo. Protestei. Não precisava de um telefone novo, o meu estava óptimo. Quando troquei de telefone, perdi os contactos recentes e retomei contactos que não me interessavam, do tempo da faculdade. Perdi as minhas preciosas fotografias, todas aquelas luas gigantes, os meus pequeninos, as nossas últimas férias de Verão. Senti-me perdida. Quando, pela primeira vez, fui por o despertador, hesitei. Queria acordar às 6h, como sempre, para conseguir tomar banho e preparar o pequeno-almoço para os pequeninos, antes de o caos do dia-a-dia se instalar. Mas o telefone complicava a minha vida, com o que me pareceu ser uma infinidade de perguntas. Acabei por decidir 'ir dormir' às 23 horas e começar a 'relaxar' três horas antes.
Se falo nisto agora, é por dois motivos.
O primeiro. Os serões de paz que tenho e temos tido nos últimos meses, desde que deixei de usar o telefone à noite. O espaço, a paz da minha adolescência. Um sentimento de gratidão - to whom it may concern.
O segundo. O meu avô teria feito hoje 109 anos. Com o seu sorriso e a sua tranquilidade, o seu ar de rapaz malandro, ainda presente em mim.