06 junho 2014
01 junho 2014
'Não percebo', diz-me ela 'Porque é que há de ser culpa sua?' Olho para a minha colega de quarto. Bolas, penso, Há pessoas mesmo saudáveis... Como e quando é que me fui tornar numa adulta tão neurótica? Mesmo assim, tento justificar-me 'Ora, porque nem sempre é fácil dizer se é por fome, por cólicas, por frio, por calor, por fralda suja ou por aborrecimento que ele chora e quando penso que é por um motivo e alguém sugere ser por outro (tipicamente fome!) fico com medo de não estar a tomar conta dele da melhor maneira.' Faço uma pausa. Nada. 'Quatro horas de choro dá para pensar em muita coisa' acrescento já que a conversa anterior não parece impressioná-la. A minha colega de quarto encolhe os ombros. 'Se acha que não é fome é porque não é fome' remata e fico sem argumentos. 'Primeiro filho' acabo por dizer com um sorriso amarelo e saio do quarto com a tralha toda nas mãos. Fomos transferidos para um quarto individual, suponho que na sequência da minha crise de choro de ontem. 'Está a precisar de descansar, oh mãe' diz-me a enfermeira, este 'oh, mãe' sou eu, já percebi mas demorei o meu tempo e assim ao fim de três dias passamos de um quarto partilhado para um quarto individual, o M. passa de uma cama grande para um berço pequeno e eu de um cadeirão para uma cama. Temos sorte. Como é fim-de-semana e por isso não há amálgamas de alunos, internos, médicos, enfermeiros e auxiliares a encher os corredores, o serviço fica calmo e eu retomo a minha marcha lenta 1,2,3, vira, canta, embala, 1,2,3, vira, canta, embala, passo para o lado, passo para o lado, passo para trás, repete a sequência. Enquanto estou nisto ele vai acalmando e, olhando o Tejo, vem-me à cabeça entre muitas, mais uma recordação. Quando estive em Londres, a minha mãe foi visitar-me. Ficou a dormir no meu quarto que não era maior do que uma despensa grande mas que tinha uma vista magnífica sobre o Tamisa, o Big Ben e o London Eye. Arranjei um colchão insuflável que estendi no chão entre a cama e a parede e onde a minha mãe dormiu mesmo depois de eu ter insistido para que ela dormisse na minha cama. Lembro-me de num desses dias acordar tardíssimo, já depois da hora do almoço e ver a minha mãe sentada no colchão a ler com o ar mais tranquilo do mundo. Pedi desculpa envergonhada quando me apercebi das horas mas a minha mãe acalmou-me dizendo que lhe tinha sabido muito bem estar ali a ler, como se tivesse sido necessário uma viagem a Londres e um colchão de plástico num quarto atarracado para o fazer. 'Era capaz de passar o resto da vida com ele ao colo' dizes-me. Eu sei que não consigo... Por isso hoje adormeço ainda o sol se despede lá fora e tu lhe falas dos passeios de bicicleta, dos livros e das telas. Durmo angustiada sonhando que não consigo acordar e de repente já dei de mamar duas vezes, já estou a embalá-lo há umas horas e lá fora já é de madrugada. Vem uma enfermeira saber porque é que ele está a chorar mas desta vez não me diz que é fome, porque também elas o começam a conhecer bem. Canto-lhe a Canção de Embalar porque fala da estrela d'alva que não tarda estará aí. E faço um esforço para cantar uma oitava acima porque li que os bebés gostam de vozes agudas mas a minha voz não é aguda e a melodia fica irregular, como acontece com os adolescentes que estão a mudar a voz. Nada disto parece incomodá-lo e ele acaba por adormecer e a enfermeira não volta a aparecer. Não quero estar aqui. Não quero voltar a percorrer os corredores da urgência com ele a gemer ao meu colo. Não quero que ele volte a adoecer. Não quero que ele seja picado vezes sem conta. Não quero que o meu colo seja insuficiente para o tratar. Penso outra vez na minha mãe, sentada tranquilamente a ler, à espera que eu acorde. Penso em mim própria... um mês de cama, o arco-íris que surgia a meio da tarde, os aviões a descolarem, os livros todos que li para passar o tempo, para pensar o mínimo possível. Penso em ti durante um mês a trabalhar até tão tarde e a deixar feito o pequeno-almoço, o almoço e o jantar, a arrumar a casa, a leres-me em voz alta. Penso na quantidade de noites sem dormir, a barriga enorme a dificultar-me a respiração e os movimentos. Penso no trabalho de parto, a minha médica a suar, apoiando os pés na marquesa, a anestesia que não funcionava, a dor dilacerante, toda a minha força que não era suficiente. Penso no horário quase constante da amamentação e nas cólicas e, por fim, penso nestes 10 dias no hospital, a angústia inicial, os corredores da urgência, o gemido, as picadas, o cadeirão, a t-shirt suada com vomitado, as calças escorregando-me da cintura agora sem barriga. Um exercício de paciência e uma lição de amor desde o primeiro instante em que te concebemos. Pouso-o finalmente no berço. Dorme tranquilamente.
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